Os últimos 5 anos ocasionaram uma mudança drástica na forma como a população vê e vive a religião e o espaço religioso. Apesar de mais antigo, esse cenário ganhou visibilidade durante a pandemia da Covid-19: para evitar as aglomerações, as instituições religiosas migraram seu espaço para o virtual com encontros em live e grupos de oração no WhatsApp, por exemplo. Durante os anos de quarentena, as religiões do mundo contemporâneo abraçaram a tecnologia e descobriram uma nova forma de celebrar a metafísica, mas enquanto o início desse movimento está na necessidade, seu momento atual está no conforto.
De robôs que celebram encontros religiosos a inteligências artificiais que se integram à rotina da fé, há diversos exemplos possíveis para o fato de que a tecnologia agora faz parte da crença. É importante ressaltar, contudo, que essa não é uma mudança universal: a maior parte das religiões tem encontrado um espaço no digital, mas algumas permanecem no tradicional.
Essa diferença não é apenas entre uma religião para a outra, mas também dentro de seus respectivos núcleos. Algumas administrações têm mais facilidade em se adaptar do que outras ou vê benefícios onde outros vêem a perda da humanização e da emoção, essenciais a prática religiosa.
Nesse ponto, o professor e mestre Fernando Razente - docente do curso de Filosofia e Ciências da Religião da Pós EAD São Camilo - defende que a integração é, apesar do senso comum - algo natural. “A partir de um estudo histórico é possível superar o chamado mito do conflito e compreender que, por muitos séculos, investigar a natureza e buscar o sentido da existência eram partes de um mesmo empreendimento intelectual”, esclarece. Para o mestre em filosofia, as ciências - fonte da tecnologia - reconfiguram os modos como a natureza é compreendida, sem perpetrar o abandono da religião e suas raízes.
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Religião e tecnologia: possibilidades e limitações por trás dessa união
Em fevereiro de 2025, o jornal Sete Margens fez uma experiência social com o Chat GPT. Nele, a IA foi questionada sobre seu próprio papel dentro da fé e da espiritualidade. A resposta do algoritmo evidenciou sua ambiguidade sobre o tema: ele pode tanto ser uma ferramenta facilitadora quanto um empecilho na relação entre o ser humano e a teologia.
“A fé e a espiritualidade são dimensões profundamente humanas, ligadas à experiência pessoal, à transcendência e à relação com o outro e com o divino. O que faço é processar informações, identificar padrões e apresentar respostas coerentes, mas não tenho uma experiência do sagrado, nem uma intuição interior que me oriente.” (Chat GPT)
Na mesma resposta, a inteligência chega a mencionar a possibilidade de substituir a dimensão humana da fé, afirmando que talvez esse não seja seu real impacto na espiritualidade, mas sim provocar novos questionamentos em humanidades, consciência e relação com o divino. A interpretação se aproxima em lógica dos estudos estruturados pelo professor Razente. De acordo com ele, religião, filosofia e ciência se unem na busca por entender o sentido do mundo e o lugar do ser humano na criação.
Por essa lógica, as mudanças mencionadas podem ser vistas como a instrumentalização de uma ferramenta que favorece a proximidade entre a sociedade da internet e a religião. Uma estratégia que, segundo estatísticas recentes sobre o declínio das religiões, se faz necessária.
Em 1952, 98% da população dos Estados Unidos acreditava em Deus. Em 2022, esse número havia caído para 82%. Desse total, 29% se identificaram como espirituais, mas não religiosos. O cenário se repete na Europa, mas não no Oriente Médio, no sul da Ásia e na América Larina - locais em que o número de adeptos à religiosidade está crescendo.
Na opinião da Irmã Ilia Delio - professora de teologia da Villanova University - essa tendência não reflete o desaparecimento da religião, mas uma mudança na forma como as pessoas se conectam com a fé. Nesse processo, a tecnologia assume o papel de protagonista ao levar a religião para fora do ambiente tradicional, possibilitando que as pessoas se conectem, orem e exerçam sua crença de forma diferente.
Segundo o mestre Razente, isso reflete a complexidade que existe na relação religião-tecnologia ao envolver fatores políticos, pessoais e institucionais. Por exemplo, agora é possível se trancar em uma bolha onde todos têm a mesma ideologia, padrão de vida e comportamento - para o fiel que não gosta de conviver com pessoas com as quais não se identifica, essa opção pode ser a mais confortável.
Desmistificando o conflito: cinco histórias reais onde a espiritualidade abraçou a tecnologia
“Um ponto frequentemente negligenciado nos debates acadêmicos contemporâneos sobre a relação entre ciência e religião é o fato de que a conhecida separação rígida entre esses dois domínios de conhecimento e experiência é uma construção histórica relativamente recente” (Profº. Me. Fernando Razente).
Historicamente, ciência, filosofia e religião compartilham um objetivo em comum: desvendar as principais perguntas por trás do universo, da vida e da existência. Apesar de terem modos diferentes de estruturar respostas, ao longo dos séculos essas três áreas dialogaram entre si, inspirando-se mutuamente e instigando umas às outras. Não apenas isso, mas a forma como as pessoas interagem com a espiritualidade influencia sua concepção da natureza e, consequentemente, o processo científico e o consumo desses recursos.
Não é surpresa então que a fé tenha encontrado um caminho para integrar a tecnologia enquanto um recurso. Afinal, o desenvolvimento das religiões pode ser para o Divino, mas quem o faz acontecer é o ser humano. São seus hábitos, costumes e culturas que moldam a forma como a espiritualidade se concretiza no mundo material e, com mais de 5 bilhões de pessoas no mundo acessando a internet e uma média global de 48% para o uso de inteligência artificial, é fácil entender como esses fatores são intrínsecos à rotina humana e a todos os processos incluídos nela, incluindo a espiritualidade.
Algumas notícias recentes ilustram essa integração de forma muito clara, mostrando que a revolução digital alcançou a religião:
- 7chat.ai - “Seu novo aliado na missão.”
Em maio de 2025, instituições adventistas começaram a divulgar sua própria plataforma de Inteligência Artificial, a 7chat.ai. Criado no departamento de Estratégias Digitais da sede sul-americana, esse recurso promete ser um assistente e um aliado da igreja na interação com os fiéis.
Segundo o diretor do departamento de Comunicação da instituição, a IA é uma realidade inevitável, assim como sua aplicação na espiritualidade dentro dos princípios bíblicos e éticos. “Devemos usar a IA para servir melhor às pessoas, não para desumanizar nossa missão”, completa.
- JesusGPT
Graças a inteligência artificial, fiéis da Suíça agora podem conversar e tirar dúvidas com um avatar de Jesus Cristo. A iniciativa foi lançada em 2024 como parte de um experimento social que testou os limites da confiança entre o homem e a máquina.O projeto recebeu o nome de “Deus in Machina” e funcionou por dois meses, período no qual foram registrados mais de 1.000 diálogos.
Para realizar essa simulação imersiva, os responsáveis treinaram uma IA para usar o Novo Testamento e refletir a personalidade de Jesus ao elaborar respostas em tempo real sobre fé, moralidade e questões de vida. Os temas mais abordados variaram entre emoções, vida após a morte e polêmicas (como a posição da instituição sobre a homossexualidade).
Quanto à opinião popular, ela divergiu assim como a visão moderna da fé diverge da visão histórica: alguns acharam a ideia inspiradora enquanto outros chamaram de blasfêmia. Um dos responsáveis pela igreja disse em entrevista que a ação visa deixar os fiéis confortáveis com a IA - mencionando, segundo rumores, que a tecnologia tem o potencial de ajudar no trabalho religioso.
- Religião nas redes sociais
Há muitos exemplos de perfis que visam “influenciar para a fé”. Através de redes sociais - como Instagram, Tik Tok e Snapchat - pessoas religiosas ou mesmo membros do clero encontraram nas mídias uma forma de aumentar a visibilidade da instituição religiosa, alcançando grandes públicos e estabelecendo uma comunicação menos rígida.
Alguns perfis, como o @filhasdamisericordia ofereceu às freiras do Instituto Filhos da Misericórdia - de Fortaleza/CE - uma nova forma de cumprir sua missão. Com um total de 243 mil seguidores no Instagram, as devotas compartilham suas rotinas e vocação em clima descontraído, seguindo tendências da internet e valores religiosos. Seus reels já atingiram 3,5 milhões de visualizações e os números seguem crescendo. Em uma entrevista para a TV Evangelizar, elas mostram que a estratégia dá resultados, conectando mais meninas à vocação.
O exemplo nacional não é o único. Nos EUA, as freiras da missão de St. Paul ganharam a hashtag #MediaNuns (irmãs da mídia, em tradução livre) e estão fazendo sucesso no Snapchat e no Instagram. Em entrevista, a irmã Theresa Aletheia afirmou ter sido incentivada pelo fundador da missão a “falar sobre tudo de um modo cristão”. No TikTok, elas têm mais de 150 mil seguidores e três milhões de curtidas e conseguem isso integrando a religião e eventos culturais, como o Super Bowl.
- Robôs na religião
São vários os exemplos de autômatos desenvolvidos para o ambiente religioso ou para uma missão de cunho espiritual. Alguns são mais antigos, produzidos em 2017 e outros, com mais recursos, são mais recentes.
Um bom exemplo é o Xian’er, um robô de aproximadamente 60 cm, expressão simpática e programado para apoiar um templo em Pequim. Em sua rotina, ele dissemina ensinamentos budistas, responde perguntas, interage com visitantes, tem presença digital nas redes sociais, aconselha, recita mantras e até canta. O clérigo foi criado em colaboração com especialistas de IA da Universidade de Pequim para tratar apenas temas voltados ao cotidiano, ao budismo e à espiritualidade. Desde 2015 - quando foi apresentado ao público, Xian’er já foi exibido em vários eventos internacionais como um exemplo de como usar a Inteligência Artificial com propósito humanizado e ético.
Curiosidade: A primeira aparição de Xian’er foi em uma revista em quadrinhos produzida pelos monges do templo. Sua missão de origem era ensinar as crianças sobre valores éticos e morais: compaixão, sabedoria e simplicidade.
Outro exemplo é o SanTO. Atualmente, esse robô japonês não está em missão religiosa, mas continua em exposição como um símbolo de união entre a fé e a tecnologia. Criado por um italiano quecresceu emmeio a forte tradição religiosa e iconográfica, este autônomo foi desenvolvido para oferecer companhia espiritual para idosos que vivem sozinhos ou têm mobilidade reduzida.
Pensado para se parecer com um santo neoclássico, ele pode contar histórias de santos e citar passagens bíblicas, catequizar, acompanhar orações e responder perguntas de fé. A versão protótipo foi testada em uma casa de repouso na Alemanha onde teve bons resultados auxiliando no bem-estar dos pacientes. No entanto, o robô que está em exposição no Centro de Ciências Copérnico, em Varsóvia, é uma outra versão: o SanTO-PL.
Conclusão
Como o professor Fernando Razente elucida, “as fronteiras entre ciência, religião e filosofia sempre foram móveis, permeáveis e culturalmente moldadas”. As mudanças que vemos na vivência religiosa mundial é uma prova disso. A cultura contemporânea é digital para a grande maioria da população mundial e se adaptar a isso é uma forma de manter as pessoas em contato com a fé.
Entre inteligências artificiais treinadas com dogmas religiosos, robôs programados para funções religiosas e contas oficiais de instituições religiosas de todo o mundo em redes sociais, é possível perceber que a fé está abraçando a antiga conexão que tem com a ciência e descobrindo uma nova forma de ser, agora no mundo digital.
Entenda os domínios que conectam a ciência e a religião com foco na história das religiões ocidentais e história das interações entre fé e ciência para aplicar esse conhecimento na docência e no campo dos estudos de fenômenos religiosos. Com o curso de Filosofia e Ciências da Religião da Pós EAD São Camilo, você fica apto a abordar as ciências pela visão religiosa e vice-versa, compreendendo a busca pelo sentido da existência humana e a ordem do universo por um novo viés.